terça-feira, 30 de setembro de 2014

"A Barbearia do Ely" - Fotos

Resgatei a cadeira em que o Ely cortava meu cabelo. O trabalho agora será restaurar. Abaixo também tem uma foto da fachada da barbearia, que funcionava na rua Júlio de Castilhos, em Pedro Osório/RS.

Para quem ainda não leu o texto, abaixo segue o mesmo na íntegra.




A Barbearia do Ely

Claudiomiro Machado Ferreira

O
uvi certa vez em um filme que toda alma atormentada deseja voltar para casa. Algo parecido, sem tanto pessimismo, ensina a Alquimia, com o retorno ao Um ou ao Início. Nunca é de forma bem definida, mas poucas coisas me fazem ter as sensações da minha infância. Consegui algo próximo quando experimentei alguns pratos preparados pelo cozinheiro e dono do sebo que frequento. Porém, com mais frequência, voltam-me as memórias infantis quando preciso cortar o cabelo.
Em Pedro Osório morava na mesma quadra da barbearia. A famosa e conhecida Barbearia do Ely. A placa era clássica, de madeira, pintada à mão, mostrava o desenho da navalha de um lado e de um pente no outro. Minha mãe me levava. Eu sentava em uma cadeira com rodinhas e ela dava a ordem:
— Bem baixinho.
E eu saía de lá sentindo aquele friozinho na nuca. Com o tempo minha mãe parou de me levar. Ela começou a me mandar sozinho, mas sempre alertava para o comprimento do corte.
— Diz para ele cortar bem baixinho.
Ainda lembro com prazer de um dos meus ritos de passagem. Nunca esqueci aquele glorioso dia em que Ely, o barbeiro, mandou que eu sentasse na cadeira onde só sentavam os adultos. A marca era Ferrante. Eu sempre lia, mas só muito tempo depois cheguei à óbvia conclusão que era o nome do fabricante. Ela tinha cobertura de couro, no encosto e nos braços. Girava em seu próprio eixo e inclinava para trás quando o freguês desejava cortar a barba.
De pequeno, Ely me viu crescer. Mas eu não ia lá apenas para cortar o cabelo. Era comum pedir a sua bicicleta emprestada. Às vezes ele dava uma ralhada ou fazia alguma recomendação resmungosa, mas não lembro de alguma vez ter negado de emprestá-la. Eu, para poder pedir novamente, sempre a entregava na hora combinada. Mas não ia lá só para isso.
Mais comum era ir para ler o jornal. Certeiro, ia direto para a página das histórias em quadrinhos. Era um diário de Porto Alegre, que eu mal sabia ser a Capital e onde nem imaginava que um dia trabalharia e moraria por dez anos. Das tirinhas lembro as do Maurício de Souza e do Super-homem. Lembro do encarte de várias páginas coloridas que vinha aos domingos e que ele permitia que eu levasse para casa. Por algum motivo, que até hoje não sei ao certo, a partir de um certo período as tirinhas que retratavam a vida de Woody Allen começaram a me chamar a atenção. Eu pouco as compreendia, mas lia mesmo assim.
Outro dia marcante, que não lembro bem, mas do qual não esqueço a sensação que tive, foi quando eu mesmo decidi como seria o meu corte de cabelo. O sentimento de ruptura e autonomia de decisão, mesmo com receio do que poderia acontecer depois, até hoje me delicia. É uma daquelas lembranças que me faz voltar às minhas origens quando sento novamente em uma cadeira de barbearia.
Um colega certa vez disse que o aspecto ruim de envelhecer é que a gente já cometeu todos os erros e pecados. Segundo ele, assim a vida perde um pouco da graça. E aos poucos ela vai ficando chata, monótona e previsível. Ele tinha razão. O pior é que a gente só percebe isso aos poucos. E as idas ao barbeiro ficaram cada vez menos aventurescas.
Com a conclusão da minha formação profissional veio a minha entrada no mercado de trabalho. Assim, como o aluguel, cujo primeiro comprovante é um troféu, mas os próximos se transformam em maldições, o mesmo aconteceu com o corte de cabelo. E mês após mês, quase religiosamente, sou obrigado a desembolsar aquela mesma quantia. As barbearias mudaram, os barbeiros também, assim como as placas, que se modernizaram. O Ely, que levava até uma hora para terminar o serviço, entre conversas de política e economia, foi trocado por desconhecidos que cada vez mais rápido e insensivelmente concluem o trabalho. Aquela cadeirinha verde, com a tinta descascada, com o acento de palha tramada ficou apenas na minha memória. Restou a sensação da água borrifada, a qual eu sempre digo sim quando um novo barbeiro pergunta:
 — Quer que molhe?
Os anos passaram. O tempo do corte ficou mais curto e o preço, maior. Hoje um barbeiro leva, em média, quinze minutos para executar um corte. O preço da sua hora de trabalho está hoje em sessenta reais. O dinheiro continua saindo do meu bolso e cada vez mais difícil está para consegui-lo.

Para pessoas como eu, que não trocaram as barbearias pelos salões de beleza, fica a lembrança dos tempos remotos da criança que, de chinelos, voltava para casa correndo, apenas para sentir o frio na nuca com o vento que passava. Também ficou para trás o tempo em que os fios eram todos escuros, mais fortes e os espaços na cabeça eram mais preenchidos. E a vontade de voltar para casa, a cada vez que o tempo passa, só aumenta.