O Rio Grande do Sul é
um Estado de muitas tradições. Lá, muitas pessoas ainda carregam a cultura do
chamado “fio de bigode”. Neste conceito a palavra dada vale mais do que
qualquer contrato assinado, mesmo na frente do mais digníssimo magistrado.
Aconteceu, porém, que
como em qualquer outro Estado desse nosso País, sempre há pessoas inteligentes
e dispostas a empreender. Na cidade de Rio Grande, que ainda guarda ares de
província mesmo tendo sinais de uma metrópole, um pacato livreiro de um
recôndito sebo, percebeu uma oportunidade.
A cada óbito de um de
seus mais ou menos assíduos frequentadores outro, ainda vivo, saldava a dívida
deixada pelo recém-falecido. A prática começara certa vez, quando o nauseabundo
mas atento mercador de livros usados, muito tristonho disparou:
— Faleceu fulano. - E completou: — Que me deixou uma dívida
de tantos reais.
Após um pesaroso e fúnebre silêncio um grupo resolveu saldar
a dívida deixada pelo falecido que morrera. E assim foi. A cada passamento para
o andar de cima um ou mais frequentadores daquele templo ao conhecimento, que
comumente abrigava a melhor nata dos ébrios
habituais, pagava a dívida de alguém que falecera.
Porém, decorrido algum tempo da prática, algo estranho
começou a chamar a atenção de um ou de outro.
Assim nasceu o assunto, que começou a tomar corpo, à boca pequena,
primeiro em pequenos grupos. A situação foi até que chegou ao ponto de alguém
perguntar:
— Vocês perceberam como aumentou a taxa de mortalidade dos
frequentadores do Dom Casmurro?
Alguns ficaram indiferentes, acostumados que estavam a
procurar em seus copos as mais profundas verdades da vida, outros estranharam a
assertiva e muitos foram como que tomados de assalto. Houve um breve debate
sobre a vida e a morte, sobre as condições da saúde no Brasil e até
considerações filosóficas sobre a efemeridade da vida humana.
Porém, um dos frequentadores já indignado e bem acalorado
também pelo consumo da marvada disparou assim que o livreiro adentrou o
salão e sentou-se para beber junto aos seus colegas:
— Heraldo, desde há muito tempo alguns de nós tem saldado as
dívidas de pessoas que aqui frequentam. Não temos nenhum problema em continuar
com essa prática, que para nós já se tornou um compromisso e uma tradição. Já
fizemos isso até para pessoas que nem conhecemos. Mas, daqui para frente temos
apenas uma exigência. Daqui para frente só pagamos a conta de quem já morreu
mediante a apresentação do atestado de óbito, pô !!!
[1] Texto
escrito em homenagem a João Eli, frequentador do Sebo e Café Dom Casmurro, cuja
dívida de R$ 15,00 foi paga pelos frequentadores do local.
[2] Escritor
e tradutor. Consultor, assessor e palestrante em Propriedade Intelectual -
Direito Autoral & Propriedade Industrial. Editor do blog direitosautoraieregistrodeobras.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário