A Barbearia do
Ely
Claudiomiro
Machado Ferreira
O
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uvi certa vez em um filme que toda alma
atormentada deseja voltar para casa. Algo parecido, sem tanto pessimismo, ensina
a Alquimia, com o retorno ao Um ou ao Início. Nunca é de forma bem definida,
mas poucas coisas me fazem ter as sensações da minha infância. Consegui algo próximo
quando experimentei alguns pratos preparados pelo cozinheiro e dono do sebo que
frequento. Porém, com mais frequência, voltam-me as memórias infantis quando
preciso cortar o cabelo.
Em Pedro Osório morava
na mesma quadra da barbearia. A famosa e conhecida Barbearia do Ely. A placa
era clássica, de madeira, pintada à mão, mostrava o desenho da navalha de um
lado e de um pente no outro. Minha mãe me levava. Eu sentava em uma cadeira com
rodinhas e ela dava a ordem:
— Bem baixinho.
E eu saía de lá
sentindo aquele friozinho na nuca. Com o tempo minha mãe parou de me levar. Ela
começou a me mandar sozinho, mas sempre alertava para o comprimento do corte.
— Diz para ele cortar
bem baixinho.
Ainda lembro com prazer
de um dos meus ritos de passagem. Nunca esqueci aquele glorioso dia em que Ely,
o barbeiro, mandou que eu sentasse na cadeira onde só sentavam os adultos. A
marca era Ferrante. Eu sempre lia, mas só muito tempo depois cheguei à óbvia conclusão
que era o nome do fabricante. Ela tinha cobertura de couro, no encosto e nos
braços. Girava em seu próprio eixo e inclinava para trás quando o freguês
desejava cortar a barba.
De pequeno, Ely me viu
crescer. Mas eu não ia lá apenas para cortar o cabelo. Era comum pedir a sua
bicicleta emprestada. Às vezes ele dava uma ralhada ou fazia alguma
recomendação resmungosa, mas não lembro de alguma vez ter negado de
emprestá-la. Eu, para poder pedir novamente, sempre a entregava na hora
combinada. Mas não ia lá só para isso.
Mais comum era ir para
ler o jornal. Certeiro, ia direto para a página das histórias em quadrinhos.
Era um diário de Porto Alegre, que eu mal sabia ser a Capital e onde nem
imaginava que um dia trabalharia e moraria por dez anos. Das tirinhas lembro as
do Maurício de Souza e do Super-homem. Lembro do encarte de várias páginas
coloridas que vinha aos domingos e que ele permitia que eu levasse para casa. Por
algum motivo, que até hoje não sei ao certo, a partir de um certo período as
tirinhas que retratavam a vida de Woody Allen começaram a me chamar a atenção.
Eu pouco as compreendia, mas lia mesmo assim.
Outro dia marcante, que
não lembro bem, mas do qual não esqueço a sensação que tive, foi quando eu
mesmo decidi como seria o meu corte de cabelo. O sentimento de ruptura e
autonomia de decisão, mesmo com receio do que poderia acontecer depois, até
hoje me delicia. É uma daquelas lembranças que me faz voltar às minhas origens
quando sento novamente em uma cadeira de barbearia.
Um colega certa vez
disse que o aspecto ruim de envelhecer é que a gente já cometeu todos os erros
e pecados. Segundo ele, assim a vida perde um pouco da graça. E aos poucos ela
vai ficando chata, monótona e previsível. Ele tinha razão. O pior é que a gente
só percebe isso aos poucos. E as idas ao barbeiro ficaram cada vez menos
aventurescas.
Com a conclusão da
minha formação profissional veio a minha entrada no mercado de trabalho. Assim,
como o aluguel, cujo primeiro comprovante é um troféu, mas os próximos se
transformam em maldições, o mesmo aconteceu com o corte de cabelo. E mês após
mês, quase religiosamente, sou obrigado a desembolsar aquela mesma quantia. As
barbearias mudaram, os barbeiros também, assim como as placas, que se
modernizaram. O Ely, que levava até uma hora para terminar o serviço, entre
conversas de política e economia, foi trocado por desconhecidos que cada vez
mais rápido e insensivelmente concluem o trabalho. Aquela cadeirinha verde, com
a tinta descascada, com o acento de palha tramada ficou apenas na minha
memória. Restou a sensação da água borrifada, a qual eu sempre digo sim quando
um novo barbeiro pergunta:
— Quer que molhe?
Os anos passaram. O
tempo do corte ficou mais curto e o preço, maior. Hoje um barbeiro leva, em
média, quinze minutos para executar um corte. O preço da sua hora de trabalho está
hoje em sessenta reais. O dinheiro continua saindo do meu bolso e cada vez mais
difícil está para consegui-lo.
Para pessoas como eu,
que não trocaram as barbearias pelos salões de beleza, fica a lembrança dos
tempos remotos da criança que, de chinelos, voltava para casa correndo, apenas para
sentir o frio na nuca com o vento que passava. Também ficou para trás o tempo
em que os fios eram todos escuros, mais fortes e os espaços na cabeça eram mais
preenchidos. E a vontade de voltar para casa, a cada vez que o tempo passa, só
aumenta.
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