As
Características da Redação Oficial
Claudiomiro
Machado Ferreira
Qualquer pessoa que tenha necessitado de
algum serviço da administração pública já passou pela situação de sentir-se um
náufrago à deriva. A incerteza de aonde dirigir-se, o fato de passar por vários
guichês até conseguir o que precisa e, ainda por cima, durante este processo, receber
respostas inexatas ou incompletas já foi o calvário de muito cidadão que não
pôde fugir de pagar algo ou realizar algum pedido junto ao poder público.
Raramente se sai satisfeito ou incólume a uma incursão ao labirinto
administrativo e burocrático tão bem descrito por Kafka em O Processo. O que
poucas pessoas percebem é que esta estrutura remonta à época do Império,
arraigou-se à cultura do início da República e consolidou-se nos dias de hoje
com a legislação atual.
Já em épocas de incertezas trabalhistas,
onde a oferta de mão-de-obra é maior do que a procura de profissionais, a
administração pública foi o refúgio de muitos trabalhadores que buscavam
estabilidade. Diferente do que já foi em um tempo atrás, para entrar hoje no
serviço público é necessário prestar concurso, disputar vagas com centenas de
outras pessoas e angustiar a espera do momento da nomeação. Na verdade, e
apesar de toda a imagem negativa que a profissão carrega, esta é uma opção
válida e reconhecida de trabalho. Seus ocupantes registram o ponto, cumprem um
horário, prestam um serviço e descontam para a Previdência, na esperança de
aposentar-se. Este recurso foi utilizado por pessoas como Lima Barreto, ao
ingressar no Ministério da Guerra, como amanuense, e o permitiu levar adiante seu
ofício como escritor, e por Charles Bukowski, que por não conseguir parar em
nenhum emprego, só se adaptou à rotina de carteiro.
Cansado da instabilidade no mercado de
trabalho da sua profissão aquele trabalhador mudou-se para uma pequena cidade
do interior do Estado. No tempo certo prestou concurso para a Prefeitura e,
após sua nomeação, tomou posse e entrou em exercício. Adequou-se como poucos à
rotina administrativa do serviço público. Em pouco tempo aprendeu todos os
trâmites burocráticos para a execução de suas tarefas e rapidamente
acostumou-se à redação de atos oficiais, setor da Administração onde foi
lotado. De fato, seu espírito introspectivo, sua postura retraída por natureza
e até sua propensão oculta à misantropia encontraram naquela função o abrigo
perfeito para quem deseja se esconder. De poucos amigos, sem família e estéril
por opção acreditava ter encontrado o local certo para trabalhar. Um ambiente
onde as relações são breves, os contatos superficiais e as amizades efêmeras e
de conveniência. E assim passava os dias, chegando ao trabalho, registrando seu
ponto, pendurando seu chapéu e seu casaco no cabide e redigindo atos oficiais
ao longo do seu expediente de trabalho.
Dentre os atos oficiais um dos mais
comuns é a Licença. Há licenças para várias situações e elas sempre estão
vinculadas à vida funcional dos servidores. Então, não foi com surpresa que
naquele dia 24 de junho redigiu o decreto que concedia Licença para Casamento,
apesar de esta não ser uma prática muito comum nos dias de hoje. A cerimônia
havia ocorrido no dia 14 e mesmo não conhecendo aquele colega de profissão para
quem redigira o ato, por algum motivo alheio ao seu próprio conhecimento,
ficara feliz por ele. Chegara até a imaginar como teria sido a cerimônia. Se
teria sido no religioso também ou apenas no civil. Por respeito não quis pensar
na lua-de-mel. Porém, não pôde ficar alheio, quando no dia 3 de julho redigiu a
Licença Paternidade. Seu desconhecido colega tornara-se pai de um menino no dia
22 de junho, oito dias depois do casamento. Pela lei teria oito dias para
afastar-se de suas atividades. Não pôde evitar pensar naquilo. Na criança
recém-nascida, na felicidade dos pais e na criança crescendo. Nos pais dando
amor e carinho, alegres ao ver aquele menino correndo e rindo. Fazendo aquelas
perguntas desconcertantes para os adultos e pedindo doces e brinquedos, ao que
é tão difícil e doloroso dizer não. O choque veio quando no dia 9 de julho
redigiu o ato que concedia luto. A criança, depois de cinco dias de vida, falecera
no dia 28 de junho. A causa descrita na certidão de óbito foi septicemia com
enteroconte necrotizante, insuficiência renal e doença de membrana hialina.
Quem trabalha na administração pública
de qualquer dos Poderes deve obedecer aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, por consequência, a
Redação Oficial deve caracterizar-se pela impessoalidade, uso do padrão culto
de linguagem, clareza, concisão, formalidade e uniformidade. Assim determina a
lei, assim orienta o Manual de Redação da Presidência da República e, por ser
um bom servidor público, assim ele redigiu o ato. O que ninguém ficou sabendo e
certamente ninguém se perguntará é por que aquele ato oficial, esquecido dentro
de uma pasta, com centenas de outros, em uma prateleira empoeirada de um
arquivo público, apresentava aquela mancha junto ao carimbo de Atendido.
Ninguém jamais saberá que ela foi causada por aquele simples servidor público
que no exercício diligente de sua função, junto a uma prece silenciosa por
aquele anjo que não vingou, sem querer, deixara cair uma muda lágrima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário