terça-feira, 16 de julho de 2013

As características da Redação Oficial

As Características da Redação Oficial

Claudiomiro Machado Ferreira

Qualquer pessoa que tenha necessitado de algum serviço da administração pública já passou pela situação de sentir-se um náufrago à deriva. A incerteza de aonde dirigir-se, o fato de passar por vários guichês até conseguir o que precisa e, ainda por cima, durante este processo, receber respostas inexatas ou incompletas já foi o calvário de muito cidadão que não pôde fugir de pagar algo ou realizar algum pedido junto ao poder público. Raramente se sai satisfeito ou incólume a uma incursão ao labirinto administrativo e burocrático tão bem descrito por Kafka em O Processo. O que poucas pessoas percebem é que esta estrutura remonta à época do Império, arraigou-se à cultura do início da República e consolidou-se nos dias de hoje com a legislação atual.

Já em épocas de incertezas trabalhistas, onde a oferta de mão-de-obra é maior do que a procura de profissionais, a administração pública foi o refúgio de muitos trabalhadores que buscavam estabilidade. Diferente do que já foi em um tempo atrás, para entrar hoje no serviço público é necessário prestar concurso, disputar vagas com centenas de outras pessoas e angustiar a espera do momento da nomeação. Na verdade, e apesar de toda a imagem negativa que a profissão carrega, esta é uma opção válida e reconhecida de trabalho. Seus ocupantes registram o ponto, cumprem um horário, prestam um serviço e descontam para a Previdência, na esperança de aposentar-se. Este recurso foi utilizado por pessoas como Lima Barreto, ao ingressar no Ministério da Guerra, como amanuense, e o permitiu levar adiante seu ofício como escritor, e por Charles Bukowski, que por não conseguir parar em nenhum emprego, só se adaptou à rotina de carteiro.

Cansado da instabilidade no mercado de trabalho da sua profissão aquele trabalhador mudou-se para uma pequena cidade do interior do Estado. No tempo certo prestou concurso para a Prefeitura e, após sua nomeação, tomou posse e entrou em exercício. Adequou-se como poucos à rotina administrativa do serviço público. Em pouco tempo aprendeu todos os trâmites burocráticos para a execução de suas tarefas e rapidamente acostumou-se à redação de atos oficiais, setor da Administração onde foi lotado. De fato, seu espírito introspectivo, sua postura retraída por natureza e até sua propensão oculta à misantropia encontraram naquela função o abrigo perfeito para quem deseja se esconder. De poucos amigos, sem família e estéril por opção acreditava ter encontrado o local certo para trabalhar. Um ambiente onde as relações são breves, os contatos superficiais e as amizades efêmeras e de conveniência. E assim passava os dias, chegando ao trabalho, registrando seu ponto, pendurando seu chapéu e seu casaco no cabide e redigindo atos oficiais ao longo do seu expediente de trabalho.

Dentre os atos oficiais um dos mais comuns é a Licença. Há licenças para várias situações e elas sempre estão vinculadas à vida funcional dos servidores. Então, não foi com surpresa que naquele dia 24 de junho redigiu o decreto que concedia Licença para Casamento, apesar de esta não ser uma prática muito comum nos dias de hoje. A cerimônia havia ocorrido no dia 14 e mesmo não conhecendo aquele colega de profissão para quem redigira o ato, por algum motivo alheio ao seu próprio conhecimento, ficara feliz por ele. Chegara até a imaginar como teria sido a cerimônia. Se teria sido no religioso também ou apenas no civil. Por respeito não quis pensar na lua-de-mel. Porém, não pôde ficar alheio, quando no dia 3 de julho redigiu a Licença Paternidade. Seu desconhecido colega tornara-se pai de um menino no dia 22 de junho, oito dias depois do casamento. Pela lei teria oito dias para afastar-se de suas atividades. Não pôde evitar pensar naquilo. Na criança recém-nascida, na felicidade dos pais e na criança crescendo. Nos pais dando amor e carinho, alegres ao ver aquele menino correndo e rindo. Fazendo aquelas perguntas desconcertantes para os adultos e pedindo doces e brinquedos, ao que é tão difícil e doloroso dizer não. O choque veio quando no dia 9 de julho redigiu o ato que concedia luto. A criança, depois de cinco dias de vida, falecera no dia 28 de junho. A causa descrita na certidão de óbito foi septicemia com enteroconte necrotizante, insuficiência renal e doença de membrana hialina.

Quem trabalha na administração pública de qualquer dos Poderes deve obedecer aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, por consequência, a Redação Oficial deve caracterizar-se pela impessoalidade, uso do padrão culto de linguagem, clareza, concisão, formalidade e uniformidade. Assim determina a lei, assim orienta o Manual de Redação da Presidência da República e, por ser um bom servidor público, assim ele redigiu o ato. O que ninguém ficou sabendo e certamente ninguém se perguntará é por que aquele ato oficial, esquecido dentro de uma pasta, com centenas de outros, em uma prateleira empoeirada de um arquivo público, apresentava aquela mancha junto ao carimbo de Atendido. Ninguém jamais saberá que ela foi causada por aquele simples servidor público que no exercício diligente de sua função, junto a uma prece silenciosa por aquele anjo que não vingou, sem querer, deixara cair uma muda lágrima.

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